segunda-feira, março 17, 2008

Lacan chez Varda - Francisco Oliveira


O sucesso de Glaneurs et la Glaneuse, uma das mais recentes criações de Agnés Varda, é sobejamente conhecido. Mesmo depois de ter sido difundido pelo Canal +, em horário nobre, o filme foi visto por 43000 pessoas em apenas nove semanas. Críticas entusiastas, filas de espera, cópias suplementares, exibição em diversos festivais, debates em catadupa, projecção em pequenas cidades de província, onde grande parte do filme se desenrola, são apenas alguns indicadores do sucesso que surpreendeu tudo e todos, realizadora incluída : “E foi assim que passou um dia na ilha de Aix, outro na ilha de Yeu, nas aldeias de Vendée, de Gironde ou do Maciço Central. Tudo isso ao mesmo tempo que as grandes cidades esperavam pela sua cópia. Tem piada...”. E isto para não falarmos de solo não francês, onde o filme circulou de festival em festival. De Portugal, onde Varda há muito conquistou um lugar especial no coração dos cinéfilos mais avisados, até ao lado de lá do atlântico, sobretudo Nova York, onde a realizadora conhece agora um merecido lugar de destaque.
O caso não mereceria a nossa atenção se não se tratasse de um trabalho realizado num formato habitualmente condenado à ruminância intelectualizante de uma minoria mais ou menos especializada, o documentário. À primeira vista, Glaneurs et la Glaneuse não reúne, de facto, nenhum dos ingredientes geralmente associados aos sucessos de bilheteira. Não se trata de uma narrativa circular, com ou sem final feliz, dispensa as estrelas e os efeitos especiais que arrastam multidões, não se propõe alienar o público ávido de uma vida ausente, numa palavra, não recorre a artifícios fáceis ou qualquer outra estratégia populista. Pelo contrário, é a realidade, tal qual ela se apresenta a quem se dispuser a parar e a olhá-la, bem com as verdadeiras pessoas, e apenas essas, que aí devem ser procuradas. Tudo isto de acordo com uma paixão que a realizadora confessa sem qualquer hesitação: “ O cinema do real faz-me sempre pensar numa expressão que utilizo quando digo «gosto de filmar pessoas verdadeiras». Não é para falar mal dos actores nem para minimizar a importância dos estúdios, mas nada me excita tanto como filmar a realidade.”
Talvez seja mesmo esse o motivo do sucesso deste documentário. O facto de nos podermos ver retratados, sem make-up, a nu, de repente transformados em personagens de um filme cujo décor, embora nem sempre reparemos nele, se confunde com as ruas, os campos, enfim, os espaços que conhecemos de todos os dias. Numa palavra, porque é o real, a vida presente, e não outra, que a autora nos convida a visitar. Mais de perto, no entanto, verificamos que uma simples vontade súbita de real, ainda que sabiamente estimulada pela câmara de Agnés varda, uma espécie de narcisismo primário, não chega para explicar a popularidade de que falamos. E isto por duas razões.
Em primeiro lugar, porque embora sejamos nós quem se passeia nas telas, é na condição de sans toit ni loi, título de um outro trabalho seu realizado em 1983, que isso quase sempre acontece. Com efeito, são os sem-abrigo, os desempregados, os clandestinos, numa palavra, os marginalizados, ainda que encarados como legítimos herdeiros de uma actividade nobre e ancestral, a respiga, quem mais prende a atenção da autora. Em segundo lugar, porque não podemos deixar de olhar para esses que depenicam os restos das bancas dos mercados e os caixotes de lixo que pontilham as cidades, tudo isto ao som de rap, música das franjas por excelência, como uma consequência imediata da sociedade tecnológica e de consumo excessivo que paulatinamente fomos construindo. Numa palavra, como uma invenção do homem contemporâneo, que simultaneamente se inundou de saber e de todos os dejectos que inevitavelmente daí derivam. De um modo geral, porque não é de todo agradável observar o resultado a que chegámos: uma sociedade que não sabe lidar com os desperdícios que produz. A não ser, o que também pode acontecer e de certo modo inspira a autora, que a uma vontade de real se associe uma visão mórbida do mesmo. Talvez seja essa a verdadeira razão do sucesso de Glaneurs: um fresco sobre uma sociedade excessiva que não sabe lidar com os seus tecidos mórbidos.
O real com que a realizadora nos confronta, ainda que de uma forma quase poética, de facto, não é um real agradável de se ver. Ainda que por vezes filmado em locais bucólicos e de algum requinte, como acontece com as casas de alguns entrevistados e os museus por onde vai passando, não é da realidade que todos gostaríamos de poder ver que se trata. Mas daquela que, precisamente porque estamos imersos neles, se decompõe em desperdícios, restos indesejáveis e outros dejectos que assim se vão acumulando. O mesmo é dizer, uma vez mais de acordo com uma linha geral que a autora traça para si mesma, apenas uma determinada visão do real, apenas uma interpretação, a visão heterológica da autora, por si só já motivo de interesse e com que agora nos surpreende : “ É isso, a relação com o real, o olhar duplo, a capacidade de o ver como real e de o ver como outra coisa. (...) É mesmo isso que eu desejo: encurralar a realidade até que se torne imaginária, retomar o imaginário e servir-me da realidade. »
Como Dali, em O rosto paranóico, que tinha recuperado uma foto de uma aldeia africana, com uma pequena casa que pousa sobre o chão como uma semi-esfera - as árvores e os negros estão sentados de tal maneira que os podíamos ver como um nariz, uma boca, numa palavra, como um rosto escondido -, a realizadora mostra-nos a realidade tal como a vê. E o que ela vê, ao mesmo tempo que nos convida a seguir o seu olhar, não é de todo agradável : “Uma vez no horror. Sou uma besta. Pior, sou uma besta que eu não conheço». De facto, tudo funciona como se a realizadora nos pegasse pela mão, gesto simbolizado pelo modo demorado com que filma a sua, envelhecida, flácida, e nos levasse a ver o que também somos, mas que geralmente preferimos não ver. E que vemos? Toneladas de batatas que são desperdiçadas todos os anos só porque não atingem o tamanho requerido. Toneladas de maçãs destinadas a apodrecer. Contentores repletos de comida desperdiçada. Vinhas inteiras abandonadas por não estarmos na época em que supostamente a qualidade do vinho é garantida. Frigoríficos, fogões e toda a espécie de electrodomésticos que se amontoam pelas ruas. Enfim, a mesma realidade com que lidamos todos os dias, mas agora com um rosto novo, um nariz novo, uma boca nova, pelo menos para que a maioria não está devidamente preparada. Talvez esse o segredo do sucesso da autora.
Em tudo como se a realidade de Varda, uma realidade sobejante, derivasse daquilo que Lacan havia dito, embora sem a carga ontológica que podemos reconhecer na visão da autora, acerca da sua noção de real, sobretudo da sua dimensão de realidade desejante. Assim, se em Lacan podíamos falar de um real enquanto realidade psíquica que supõe um resto inaproveitável, um desperdício e uma realidade inacessíveis a qualquer pensamento subjectivo, o mesmo é dizer de um resto impossível de simbolizar e irredutível à matematização. Em Les Glaneurs et la Glaneuse vemos uma realidade incapaz de gerir razoavelmente, isto é, rentavelmente, os desperdícios que vai produzindo sem critério. Uma sociedade de consumo excessivo incapaz de reaproveitar e reciclar lucrativamente todas as sobras que se vão acumulando. Que por não poderem ser postas ao serviço da economia, do mesmo modo que aquele não chegava a ser integrado no inconsciente do sujeito, vão ganhando um lugar à parte, a parte maldita, bem como uma expressão própria, embora desordenada ad initium. Em suma, por um lado o lixo que se vai distribuindo desordenadamente pelo mundo e assim vai determinando inexoravelmente a qualidade de vida das pessoas. Por outro, os significantes foracluídos do simbólico e todos os gestos, alucinações e delírios em que se traduzem e o sujeito não controla.
Mas se a maioria não se apercebe da realidade delirante em que navega, outros há, eles próprios resultado directo da sociedade de consumo e desperdício excessivos, que insistem em contrariar a aparente inevitabilidade de nada poder fazer a partir dos restos produzidos. Falamos agora dos respigadores, os verdadeiros protagonistas da realidade traçada por Varda, cujas experiências e expressões várias se sucedem como num desfile ao longo de todo o filme. De facto, falar de Les Glaneurs e de uma extensa galeria de respigadores que, desde épocas mais remotas em que a actividade era vista com naturalidade, até hoje em que surgem novas e surpreendentes expressões da respiga, são uma e a mesma coisa. É assim, a partir de um célebre quadro de Millet –As Respigadoras-, que a realizadora nos vai apresentando, um a um, os legítimos actuais herdeiros daquelas que ali serenamente apanham os restos abandonados de trigo. É assim, sem grande trabalho de montagem, de câmara digital em riste, que Varda nos vai confrontando com os heróis do admirável mundo novo. Equipas inteiras dos restaurantes do coração que respigam para garantir a subsistência dos sem abrigo, por si só já um excesso; desempregados e imigrantes clandestinos que se banqueteiam nos caixotes de lixo; os ciganos; alguém que se propõe ensinar a cozinhar a partir das sobras; outros que produzem aguardente a partir de uvas excessivamente maduras e deixadas para trás; um pintor que cria a partir de objectos abandonados nas ruas; um pedreiro russo que constrói torres totémicas a partir de lixo e bonecas estragadas; Louis Pons, para quem a arte consiste em encontrar o equilíbrio no lixo que nos rodeia; os respigadores de ostras; os rastafarai que se recusam a ser incluídos numa qualquer ordem senão a da deriva; o voluntário que por razões éticas come há quinze anos do lixo e à noite ensina francês às comunidades desintegradas; um chinês cuja casa é inteiramente construída a partir de objectos que outros deixam para trás; uma sociedade que recupera frigoríficos das maneiras mais espantosas; uma creche onde se ensina a recuperar o lixo na produção de brinquedos; enfim, Varda, ela própria, que além de recuperar objectos ao longo das filmagens e os levar para casa, qual respigadora de imagens, constrói uma narrativa atípica - atípica porque surge como uma peça de jazz, a realizadora chega mesmo a abandonar a câmara ao sabor do acaso- a partir de situações e experiências que, uma vez isoladas, continuariam a escapar ao olhar desatento do discurso economicista: “É verdade que filmar, especialmente o documentário, é respigar. E isto porque aproveitas o que encontras; vergas-te; procuras; és curioso; tentas descobrir onde as coisas estão.”
O facto de Varda não se limitar a denunciar a panóplia de desperdícios que se vão acumulando e, sobretudo, o de insistir na ideia de que há quem reaproveite o aparentemente inaproveitável, revelam pelo menos duas coisas. Por um lado, que Lacan está presente no seu trabalho, uma vez que também ela fala de um mundo à parte, irremediável. Por outro, que essa presença não está senão para ser superada, pelo menos parcialmente. É esse o sentido da sua insistência na ideia de criação múltipla a partir das franjas, das margens, daquilo que podemos considerar os dejectos e excrementos deixados pelos outros. O recurso ao discurso bíblico e judicial - a determinada altura podemos ver um juiz em plena horta explicando porque em determinadas zonas de França se pode, segundo a lei, respigar -, é também prova disso mesmo, a mesma tentativa de legitimar uma actividade que se recusa a aceitar a irredutibilidade do mundo dos restos. Por um lado, a assunção de uma dimensão que escapa à clarividência do cálculo, tal como Lacan havia dito em relação à sua noção de real. Por outro, mas agora rompendo com este, a ideia de que é possível conferir uma ordem, ainda que outra ordem, ao mundo desmedido dos restos. Tal como Louis Pons, um dos artistas entrevistados, cuja obsessão seria a de encontar uma ordem e um equilíbrio no lixo.
De facto, não só não se trata de um simples regresso às sínteses do inconsciente freudiano e à ideia de sublimação, como não estamos perante um simples abandono da matriz a partir da qual Varda interpreta a realidade, como se de uma espécie de foraclusão se tratasse, e assim se recusasse de todo a concepção de real lacaniano. Parece não restarem dúvidas que também a realizadora supõe uma dimensão heterológica indesmentível, que também ela supõe o real lacaniano no modo como estrutura realidade. Com a diferença, porém, à semelhança do que o analista diz do inconsciente, de que esta o concebe como entidade simbólica, como linguagem também. A mesma linguagem de que o seu trabalho, todo ele construído sobre uma sucessão de imagens respigadas não produzidas, seria uma boa expressão. Não havendo, portanto, qualquer lugar para o parricídio. Lacan não só está presente, como é a partir dele, embora superado, reformulado, que Varda constrói a sua própria identidade.
Não será por acaso, aliás, que lá bem no meio de todos os respigadores que vão desfilando sob o olhar da câmara de Varda, no conforto da sua casa em Pommard, viticultor ao domingo e intelectual nos dias úteis, vemos surgir Jean Laplanche. Como é sabido, embora a propósito da hipótese de um inconsciente-linguagem, também ele sustentou ao longo da vida uma relação ambígua com Lacan. Embora Laplanche afirme que esse será sempre o seu mestre, que será sempre o seu discípulo fiel, como sabemos, a verdade é que podemos ver no percurso do filósofo da análise, é assim que Laplanche se apresenta no documentário, uma vontade permanente de se demarcar de algumas teses fundamentais de Lacan. A fundação da Association psychanalytique de France e o silêncio a que em 1960 Lacan condena as teses de Laplanche, sobretudo a de que o inconsciente é condição da linguagem e não o contrário, não são senão o resultado disso mesmo: do conflito entre o mestre, o pai, e o discípulo, que sem rejeitar o modelo, se propõe pensar por si próprio. Uma posição desconfortável, portanto, uma espécie de anti-lacanismo dentro do próprio lacanismo. Como resulta bem visível, depois da sua mulher lembrar que também ela tinha sido analisada por Lacan, da prontidão nervosa com que Laplanche tenta ocultar e passar por cima do nome do seu mestre: “Sim, mas isso foi antes de nos conhecermos.” Preferindo insistir na sua condição de teórico da análise e na ideia da prioridade do Outro no reconhecimento do sujeito. (Lacan? Encore?). Numa palavra, como diz, empenhado numa anti-filosofia do sujeito.
Uma série de presenças ocultas que se redescobrem por detrás dos biombos que sucessivamente se vão interpondo nesta espécie de palimpsesto comum. Nada a que Lacan, ele próprio, afinal, não estivesse habituado. Sabemos do díptico que se destacava por entre uma série de obras de arte que enchiam o seu bureau, um quadro “duplo” composto pela parte profunda de uma tela de Coubert, representando o sexo aberto de uma mulher, e pela parte visível de um esconderijo em madeira construído por Masson, onde são arbitrariamente reproduzidos os elementos da primeira pintura. Assim como sabemos que há quem tenha estabelecido um paralelo entre o “estranho” díptico e o modo como Lacan oculta a presença de Bataille, o primeiro a falar de uma heterologia e de quem aquele, sem que o admita explicitamente, é dependente na sua concepção de real: a dimensão dos tecidos mórbidos, dos restos, das imundícies e do desejo ex-cêntrico, numa palavra, como diria o autor de Edwarda e de La partMaudite, o excesso. Afinal o verdadeiro motivo de inspiração de Varda. Que nos recorda, como aqueles haviam feito, que não haverá lugar para qualquer visão integral do sujeito se ignorarmos a dimensão que este não domina, aquela que escapa à sua vontade e à sua inteligência; bem como, mas agora apenas como Bataille já havia dito, que nenhuma economia resistirá, por muito forte que seja, senão se atrever a olhar de frente, nos olhos, as sobras que vai inevitavelmente produzindo.
Francisco Oliveira

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